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URUBU QUE BEBIA CACHAÇA

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  A praça era antiga. A igreja, um pouco mais. Vila do Conde é uma ponta de terra enfiada no rio Pará. Portuária, no horizonte esmaecido do rio, a ilha de Marajó. Ali, embarcam bois aos milhares para os rincões do mundo nos navios que se atracam. Não só bois, mas também a bauxita, o caulim, o dendê. O rio não parece rio, parece mar. É preciso entrar nele para creditá-lo como rio de água doce. Ali banham seus ribeirinhos, na maré baixa. Ali se enfiam os navios vindos do mundo inteiro. Como em todo porto, abundam os detritos e os urubus que os faxinam. De modo que que, na vila, eles estão lá, centenariamente, como seus moradores tradicionais. Há cães aos montes. Há bêbados que fizeram da praça sua casa. E todos convivem numa existência que parece perenizada. Todo mundo conhece todo mundo. Virtudes e vícios são públicos e preenchem as conversas e as notícias. Não faltam os peixes como não faltam o açaí nem a mandioca dos tacacás e maniçobas. Também não falta a cachaça. Mas, entre os b...

ORA POMBOS

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  Sem muita disposição para ler o único livro que trago na mochila e tendo três horas de espera de ônibus em Imperatriz, fui me ocupar da observação de pombos.  Eu sei que deveria me ocupar de temas emergentes, como o da defesa da soberania nacional. Tenho medo de cochilar 10 minutos e acordar com notícia de golpe. Foi assim. Estava trabalhando longe do celular e perdi o momento exato em que o inelegível recebeu sua primeira tornozeleira. É impossível ficar atenta a tudo. Pisquei os olhos um dia desses e os EUA atacaram o Irã. Penso que posso segurar o tempo, inibir todo gesto, se não me distrair.  Não consigo falar do genocídio em Gaza. Nunca imaginei viver isso: genocídio ao vivo e gente imbecilizada enrolada em bandeira de Israel. Não consigo dizer, não consigo ver as imagens que chegam.  Covardemente, espio pombos. Uma dupla toma banho na água suja que corre ao lado da calçada. Felizes, voam e driblam o calor. Há um gordo. Bonito, com algumas penas azuladas....

CARTA

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  CARTA Cara, escrever rodando por estradas é como uma exigência da experiência que ulula, que grita. Estamos nessa trip já somam dois meses. Desde que saímos do Rio de Janeiro, no início do ano, muitas coisas surpreendentes e apaixonantes têm ocorrido. Mas vou dar um salto, vou pular São Paulo, Paraná e Santa Catarina só pra contar nossos últimos dias. Estamos em Osório, uma minúscula vila de pescadores no extremo norte do litoral do Rio Grande do Sul. A praia é do tamanho do Arpoador, aí do Rio. Ela tem ondas batidas e permanentes. Onda trepando em onda montando um mar marolado e sempre cheio. Não é legal pra pegar onda, pra surfar, mas é ótimo pra banhar. É fundo logo na beira, mas dá pé, formando um banco de areia depois da arrebentação, longo, contínuo, até a formação das ondas. Quem sabe morem duas mil pessoas nesse lugar. O sol é intenso e delicioso, temperado por um vento matutino voraz, agitando palmeiras e lançando areia nos casebres sem forro. A maioria das habitações na...

Luna y Sol

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  Há uma cachorrinha miúda em casa, ‘perrita, cómo dicen los hermanos’, é o dengo da casa e onde vê um colo ocioso ela trata logo de ocupá-lo. Seu apropriado nome é Luna porque nos deixou desde que chegou há dois anos no mundo da Lua. Ressalve-se que como somos pessoas da terceira idade, Luna tem sempre companhia em casa e estranha, e entristece-se, se fica pelo menos meio período do dia sozinha. No retorno a casa de algum de nós, quando se prolonga seus momentos de solidão, sua felicidade é tamanha que chega a urinar-se.  Mas nos últimos dias, Luna ficou muito ressabiada, e sob a ótica canina pode até justificar-se seu ressabio. Vejamos, pois. Por motivo de saúde minha esposa e sua mãe tiveram que ausentar-se de casa por horas seguidas por dois ou três dias para consultas médicas. Eram só consultas médicas, mas Luna, habituada a companhia constante, lá ia entender isso? A coisa complicou quando ao final do circuito médico, o correio trouxe um robô-aspirador um pouco maior que...

CADÊ

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  Cadê um Brasil verdadeiro, o Real, como cantaram Machado e Suassuna? Cadê as cidades bonitas, arborizadas, humanas e acolhedoras? Cadê os asfaltos de qualidade, a água tratada, esgotos, saneamento urbano com preços dignos? Cadê a energia elétrica de qualidade e custo real? Cadê as praças humanizadas, lindas, prenhes de pessoas das várias faixas etárias nas cidades? Cadê os impostos praticáveis, seja do imóvel,  do carro, dos produtos de alimentação e de consumo diário? Cadê as taxas de juros justas e humanas dos bancos e lojas sobre os mais despossuídos, ainda mais nessa pandemia, quando esses tipos de empreendimento arrancam até o couro do brasileiro? Cadê políticos verdadeiros que armam suas canetas para defender, apoiar e oportunizar vida digna aos cidadãos? Cadê os salários justos dos funcionários públicos nas três esferas do poder - Legislativo, Executivo e Judiciário - sem contracheques milionários e benefícios indecorosos, nas três instâncias: União, Estado e Municípi...

Senescência

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  Senescência... Está aí uma palavra muito bonita, que vim a conhecer há uns 10 anos! Naquela ocasião, uma amiga da família, com quase 90 anos, sabendo do meu amor pelas palavras, me perguntara desafiadoramente se eu sabia o que era “senescência”. Nunca tinha lido ou ouvido falar, mas tinha uma vaga ideia, já que a palavra “senectude” me era familiar. Na Suíça há “Pro Senectude”, uma instituição que dá assistência aos idosos. Por via das dúvidas, procurei “senescência” no dicionário. Gostei muito, achei-a linda, melodiosa e, sem pestanejar, adotei-a para sempre! Desde então, “senescência” define muito bem a fase etária em que me encontro.  Com garbo, “senescência” substitui expressões bastante usadas e, às vezes pesadas, como: velhice, terceira idade, melhor idade, pessoa idosa... Senescência... O tom com que a falamos já inspira carinho, tranquilidade. É uma palavra que rima lindamente com “adolescência”... aquela fase encantada, longínqua, tão querida, que guardou seu fresc...

COTONETES AINDA

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  Eu não sei se você percebeu, mas, nos últimos tempos, pintaram muitas notícias, artigos, posts, reels, vídeos e outros “conteúdos” alertando para o uso de cotonetes — vulgo hastes flexíveis. Eu continuo a usar. Não se trata de uma bandeira em defesa da liberdade de ser tolo, nem de um mimo de mínimo autoflagelo — muito menos de uma tara pelo prazer de se coçar o juízo —, mas simplesmente de uma decisão consciente de desistir um pouco de poucas coisas. É a resistência pela desistência. É a consciência daqueles que ainda sentem alguma coisa que inconscientemente estamos todos com algo a nos tapar os sentidos. Destarte, o autocuidado está em não empurrar o cerume para o fundo, nem higienizar tanto a ponto de perder a proteção natural.