TRÊS APITOS


Acompanha durante o dia as oscilações da Bolsa de Valores, desde que Trump e suas tresloucadas medidas econômicas entraram em cena. Amigos do partido compartilham, fazem especulações, analisam. Taxações contra importações. A guerra tarifária com a China. Dizem que agora ele lá quer mudar o presidente do Banco Central deles, derrubar as taxas de juros. Aqui, dia e noite defendem que os juros subam mais, reclamam do crescimento econômico, do PIB alto, da queda do desemprego. O economista mais endiabrado defendeu congelamento do salário-mínimo por 6 anos. Articulações de deputados vinculados aos vendilhões do templo ensaiam boicote ao projeto da eliminação de impostos a quem ganha míseros 5 mil reais. Querem proteger os que nunca pagam imposto, a despeito dos lucros milionários. Pobres de direita ensaiam fazer jejum pela cura de Judas, o traidor. Ela, desde sempre, entende muito pouco da bolsa. Lembra um dia, quando foi com a mãe, a tia e a avó visitarem uma comadre. A velha morava às margens da linha do trem, no centro da cidade, cortada desde há muito pela estrada férrea. Como a produção do aço não pode parar, minério de ferro para lá, aço para cá, e a cidade partida ao meio. Nessa época, não entendia de trens. Ouvia as comadres conversando. Muitas histórias, algumas sussurradas, porque falavam de alguém que perdeu dinheiro com a queda da bolsa. Pensava então que uma bolsa pudesse cair no chão, o dinheiro sumir pelos ralos, mas desconfiava que seria mais do que isso. Lembrou hoje, quando o amigo postou notícia da Bolsa, desse encontro e tantas histórias. Numa delas, um ator de novela teria sido enterrado vivo. A cena do sujeito dentro do caixão, acordando em desespero, marcou-lhe a infância vivida com tantos medos. E a bolsa. A velha senhora parecia-lhe inquieta com a visita inesperada. Chegaram ela, a mãe, a tia, a avó. Menina, desconfiava de que não eram tão bem-vindas. A velha estranha e filhas não pareciam animadas para um recepção de comadres que deveriam se gostar. Selecionou as piores notícias que ela, tão quieta como convinha a uma criança medrosa, ouvia e guardava para alimentar novos medos. O pior era imaginar que a velha morava ali, a poucos metros do trem, o barulho contínuo, o tremor da casa. Não se lembra do apito do trem, mas ele certamente deu o ar da graça. A cidade devia parar, esperar o comboio, as manobras, quedar-se enquanto a economia girava, com seus frêmitos e incertezas. 

Do trem veio a memória de outro momento, na mesma rua, um pouco adiante. Com amigas da escola, deveriam fazer algum trabalho, organizar textos e imagens numa cartolina. Devia ser rosa. Meninas faziam trabalhos de escola em cartolina rosa. Uma delas colocou para tocar um disco e exigiu que ela dançasse com um menino. Ela achava que o amava, tão amigos eles eram, compartilhando sabe-se lá o que de que ela não se lembra. Só sabe que eram assim. Inseparáveis. Foi a primeira vez em que dançou com um menino. A música era One day in your life, cantada então pela voz juvenil de Michael Jackson. Ela não tinha a menor ideia do que os versos diziam, ainda não haviam principiado as aulas de inglês na escola, mas ficou ali, gravado o momento, o encontro com talvez o primeiro amor de sua vida. Houve trem, apito, barulho, a casa que os abrigava deveria ter tremido umas tantas vezes naquela tarde de sol. Guardou apenas o momento feliz. O menino se mudaria da cidade, num dos anos seguintes e ela sofreria por muito tempo sua ausência. Desconfia agora, quando a memória atravessa o dia de feriado, de que virou um bobo bolsonarista. Ainda bem que sumiu. 

Por associação segue outro momento. A amiga se casava em Conservatória. O então namorado tinha prometido arrumar um carro. Era mentira, como tantas outras ainda a descobrir. Foram, enfim, de ônibus e chegaram atrasados. Chegaram quando poderiam anunciar, no preciso momento da fala do padre, que teriam algum impedimento a declarar. Um vexame, entre muitos acumulados. Ela não deveria estar bem-vestida para a ocasião. Nunca estava. O luxo era um batom roxo da Avon. Queria ser Carmem Miranda, mas custavam caros tantos apetrechos. A amiga se casava e ela estava lá, feliz. Não desconfiava de que seria uma história desagradável. Anos mais tarde desenvolveria a sensação esquisita que transita da alegria dos encontros anunciados em casamento e a desconfiança de que o amor não dura e que os problemas aparecem logo. O pior deles com as agruras judiciais. A amiga se casava e ela acreditava no amor. Que deve ter existido, gerado momentos felizes, mas que acabara cedo demais para tanto tempo de exasperação, que a amiga, discreta, não contava. Separaram-se, muito tempo depois. A amiga de coração bondoso, paciência infinita, perdera o dom da insistência no que ruíra de vez. Então, por acaso, reencontrara o amor. O moço, um maquinista. Cortava os trilhos da idade anunciando sua passagem. A cada anúncio, a certeza do amor. O carvão indo, o aço voltando e o amor, anunciado, gritado pela cidade. Despudoradamente. E ela gozava, na fricção dos trilhos, na potência da máquina, na certeza da sua presença, as certezas do amor. Que corre e ruge, em festa. É assim.


Ciro Gonçalves artista tocantinense

 

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