Contas a pagar
Tem
um amigo que me enxergou de tresvez, certa vez. Preciso sentar com ele e
mostrar meu lado de menino.
Um irmão, certa vez, me tirou seu brilho de herói que eu trazia na minha retina
de menino. Preciso ver ele pelos meus olhos de dentro.
Meu cunhado, que eu tanto achava homem, se mostrou um menino perdido e eu não
tive a bondade de abrir meus olhos infantis e revê-lo.
Outro irmão, que eu achava invencível, se mostrou na sua plenitude: um ser
humano buscando o seu pertencimento. E eu, embevecido pela beleza do momento
que vivia, não lhe dei a mão no momento certo.
Um terceiro irmão, que eu sempre considerava um mito, um indestrutível, se
revelou demasiado humano. Tento remontar as memórias que dele trago, pra vê-lo
amanhã impoluto e digno.
Minha irmã, que eu sempre trouxe comigo como uma Eterna meninhinha, plena da
força interminável da alegria da perfeita infância, se revelou uma mulher e
mãe, absolutas. Resta me curvar, eternamente, a ela.
Minha mãe, que me mostrou o caminho insone, mas indizível da palavra, por meio
das revistas de fotonovelas que ela, pacientemente, digeria entre uma e outra
pedalada na companheira Vigorelly, tem seu altar aqui dentro de mim, mesmo que
seja um altar de palavras vãs.
Meu pai, um dos seres humanos mais bonitos que já li, digno, forte,
inatravessavel, atlético, portentoso, inconfundível, se foi e alguma coisa dele
ainda permanece em mim. Ilusão na qual me agarro pra não cair.
Um verso inclassificável e inexprimível tá entalado no meu tronco de nordestino
e brasiliano bilioso.
Ainda não estou bem resolvido com a Morte.
Mas sei que não é solução: trancar o coração no peito metalizado do medo de
sempre;
gastar
todo o assombro no susto diário dos poderosos;
resignar
o sonho no delírio gasto do ontem;
trançar
as pernas bambas no escuro do beco;
gritar
o desejo num shopping dezembrino;
alucinar
o olho no buteco da perifa;
ouvir
o além sentado na burocracia diária do sustento;
dizer
que o que você sente é verdadeiro.



Adorei. Maravilhoso texto.
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