O CASO DA MOÇA COM AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
Soube há pouco do falecimento do professor, pesquisador e escritor Affonso Romano de Sant’Anna. Não sabia que estava doente, que tinha Alzheimer, essa doença que me assusta, porque sei que tudo o que somos se vai quando a memória acaba, que sem memória não há propriamente um sujeito. Segue logo depois de sua companheira, Marina Colasanti, o que me leva a pensar nos laços que ligam as pessoas, na ausência que conta para a decisão de partir, mesmo que precária seja a capacidade da vontade.
Daí me lembrei do caso da moça com o poeta. Vou contar brevemente, eliminando muitos detalhes, porque há coisas que ela não me autoriza a revelar, outras sim.
Ela fazia então uma curso de especialização. Uma primeira disciplina tinha sido um desastre: a professora de Tecnologia Educacional falava das técnicas, metodologias, tecnologias e ela discutia que tudo isso seria secundário, porque havia algo mais profundo e determinante, que seria, por exemplo, o recorte de natureza ideológica dos conteúdos, definir que saber é, enfim, o que de fato interessa. Os colegas da enorme turma ficavam assustados com os embates e advertiam: você nunca vai ser contratada para lecionar nesta faculdade com essas ideias. Ela não pensava no futuro ou era só mesmo muito teimosa para desistir de suas convicções. Gente nova tem o dom de ser muito metida.
Então, anunciou-se o novo professor. A disciplina seria de Filosofia da Educação. Animou-se. Tendo estudando Letras em tempos ainda muito marcado pelos resquícios fortes da ditadura, o currículo não contemplara filosofia. Não sabia para onde ia e o que isso poderia interessar para o campo educacional. E lá veio o professor, magrinho, discreto, formal, a cada do Dustin Hoffman. Apaixonou-se pelo professor e pelas discussões, pelos textos, lamentando a brevidade do encontro.
Ao final da disciplina, o professor solicitou que escrevessem apenas uma lauda, na qual os estudantes, quase todos professores, defenderiam sua adesão a uma das correntes filosóficas que interpretavam a educação. Na época, escrevia-se ainda à mão e ela, muito metida, achava que tinha tanto a dizer, mas respeitou a orientação. Resolveu falar de Bourdieu, mas insinuando que mesmo sendo a escola lugar da tradição, havia acenos para a transformação e movimento. Escreveu com a menor letra que podia, no menor espaço possível e acrescentou, ao final, uma espécie de declaração de amor ao professor. Era muito assanhada. Foi no modo citação: um poema do Affonso Romano de Sant’Anna que ela lera no jornal.
Presente
O que te dar neste dia?
O que te daria eu ontem
quando não te conhecia?
E amanhã, o que darei
se hoje não te dei
o que devia?
O que te dou é apenas
sombra do que queria.
Dou-te prosa, e o desejo
era dar-te poesia.
O professor devolveu os trabalhos todos devidamente comentados e com as notas e disse que o que o mais impactara fora o trabalho dela, a atrevida. Era a despedida das aulas, do encantamento, da aprendizagem permeada por inesquecível amor. Ela e os colegas, em manifestação de carinho, foram levar o professor até a rodoviária: ele morava em outra cidade. No caminho, ele, discretamente, cochichou-lhe os versos. Tinha decorado o poema. Deu-lhe também dois volumes de poemas do “Violão de Rua”, com poemas politicamente engajados de gente como Vinícius de Morais e Ferreira Gullar, que ela ainda obviamente traz consigo.
A moça não sabe onde está o velho professor que foi tão determinante para sua formação. Guardou na memória o poema e o encontro feliz. Hoje partiu o poeta, mas fica sua poesia. É assim a vida, enquanto houver memória, como a moça hoje me diz.
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