Anatomia de deus
Mirei deus nos olhos e lhe disse: os tempos de subserviência acabaram. Ele encarou-me furibundo, e nesse momento expressou numa pergunta o pensamento que com certeza lhe acutilou o íntimo e os brios com força: rendeu-se ao diabo? Estalei sonora gargalhada em sua cara senil com vestígios de Big Bang: acabou sua onisciência?! Ele, surpreso, entre a dúvida e o concupiscente desejo pela alma alheia, gaguejou: queria ouvir de seus lábios, apenas isso. Neguei-lhe o pedido, ressalvando que a emenda ficara pior que o soneto: presunçoso você, bem isso. Mas tanto tempo valendo-se da submissão humana para endeusar-se, entendo sua exacerbação de caráter, mas a reprovo. Sem ligar a mínima para meu juízo, mas abrandando a ira, ele insistiu: Sim ou não? Recusar um, para mim, não é submissão ao outro; tampouco significa qualquer possibilidade de retratação futura... Ele interrompeu-me querendo ser irônico, mas soou infantil e hilário: o futuro a deus pertence. Ri do bordão, desconcertando-o, e como permanecesse assim, fustiguei-o: não só já era sua onisciência como sua onipotência, já lhe disseram que o futuro é nosso, melhorado pelo permanente desenvolvimento do nosso conhecimento? Foi quando ele me surpreendeu ao acusar sentimentos humanos porque nos incutem que deus prescinde deles: sofro desde que os criei (não quis interrompê-lo – embora merecesse – para contestar a criação). A confissão era clara demonstração de fragilidade, um surpreendente rasgo de humildade, ainda que sob pressão. Assumia que não era infalível. Tive pena nessa hora, não deveria por tratar-se de deus permanentemente declarado acima do bem e do mal e impermeável a nossas fraquezas e sentimentos; mas me comovi porque a manifestação dessa centelha humana, e com os humanos me comovo, o punha ao nosso nível. E ele seguiu adiante: sofro com a impossibilidade de nunca saber o que vai por suas cabeças; se me adoram ou veneram o diabo. Então essa é a razão de exigir que lhe dirijam, em altas e potentes vozes, preces e súplicas? Sim, para que assim eu saiba quem me é fiel.
Fez cara de temor pelo segredo revelado e ainda na defensiva quis de mim a confirmação: eu moro no coração de todos vocês, não é mesmo? Morava, acabou-se a onipresença. E onde fico nessa história?, queixou-se. Digo-lhe agora, ficará nos livros de história, na companhia de tantos outros que o precederam e que tornamos apenas o que também será doravante: material de estudo mítico.


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