CHEGAR PARTIR FICAR
Sim, são verbos. Decorei-os na
sua conjugação completa. Verbo e tabuada eram tarefas a dar decor. Chego,
chegas, chega... Parto, partes, parte... Fico, ficas, fica...
Todo mundo achava que os futuros do presente e do passado eram de conjugação
mais complexa. Um dia, caí na esparrela de conjugar somar no futuro do
passado: somaria. E eu era José, ainda que maricas. Hoje sou maricas, e
continuo sendo José. Lembro do mentecapto de Fernando Sabino, numa
disputa de conjugação de verbos, quando lhe pedem para conjugar o verbo pelocupar
no condicional. Sabido é que o louco é motivo de riso, porque do riso mesmo ele
nunca comunga. O louco é muito sério nas suas certezas.
Mas não é nada disso que quero constar dos verbos chegar
partir ficar. É que verbos em títulos de textos me remetem aos anos
iniciais da escolaridade. Eu quero falar de um colibri e de um
prendedor-de-roupas e de suas singulares ontologias. Era um meio de tarde no
tempo da seca. A janela do quarto dá vista para o varal de roupas, primeira
paisagem antes do muro lateral descascado. Vazio, exibe os prendedores,
expostos ao sol, ressequidos, num calor acima de quarenta graus. O que é um
prendedor-de-roupas além de sua funcionalidade? Como toda coisa, conforme diz
Aristóteles, sua excelência consiste no funcionar bem. Ele é preensor, alicate
delicado, E o que prensa, não solta. Se não tem roupas, prende-se no arame. Ele
é a antítese da liberdade, como também sucede a tudo e a todos que são
funcionais. Quem trabalha no e para o sistema é prendedor. Sempre está a morder
o que lhe estendem para isto. Só se demitem desta escravidão quando se
arruínam, com destino fatal ao descarte numa lata de lixo, esta também
funcional.
Da janela deste específico quarto, vejo o varal. De
outras, vejo o jardim. E, no jardim, pássaros, abelhas, aranhas e mamangavas.
Dos pássaros, um corriqueiro colibri azul-esverdeado. Vai e volta, deixando-me
intrigado sobre seu endereço. Eu me coloco, quieto, para percrustá-lo,
reverenciá-lo. É a súmula da delicadeza. E me sinto um privilegiado com a sua
constância no jardim.
O colibri, ao inverso do prendedor, é o retrato da
liberdade? Há muito tempo, passei a desconfiar da liberdade alada. A começar
pelos pardais e corruíras nos vãos do teto e buracos de toco de casas de
madeira. O que me parecia algazarra de meninos no chilrear de pássaros foi
comutado pela seriedade de sua sobrevivência. Eles são tangidos pela
necessidade. E não é por passeio que comparecem no meu jardim. Nem para
conferir o meu encanto que, embora lhes dê uma peculiar importância, é uma
coisa perfeitamente dispensável. Pássaro cantando é a vida urdida deles, muitas
vezes atribulados por ameaças de outros. O canto, não raras vezes, é briga em
prol de uma defesa. Inegável que, para o humano observador, seres alados dão a
ilusão da liberdade.
E então olho da janela para o varal e lá estão as duas criaturas: o prendedor e o colibri. O prendedor estático, causticado, já desbotado por sol e chuva, madeira cinzenta. O colibri, pousado no arame, parece o prendedor. Não se mexe, está exausto. Talvez tenha sede. São minutos breves e intensos. Cansou de suas asas. Espera pela força dispendida do seu ir e vir. O lugar não é dele, não lhe cabe. É preciso ser um prendedor para estar ali. O sol é o mesmo de ontem e será o mesmo amanhã.
Por um instante, prendedor e colibri se irmanam. Talvez
este pudesse contar sua história ao outro, pensa o observador com mania de
versos. Talvez pudesse pedir o prendedor (Me leva!) um ajutório para uma
linha de passe. Um é livre, vai quando pode. Outro é prisão, não vai mesmo que
queira. Um ganha o mundo? Outro ganha túmulo?
Ainda não sei, como é certo que os pensamentos são meus
e eles, melhores que eu, não precisam pensar. A liberdade é um problema apenas
para mim, o único dos três que qualifica. Eles apenas sobrevivem, na estrita
funcionalidade que permite que sejam assim nomeados: colibri e prendedor.
Eles não são um substantivo próprio, nunca serão.
E eis que o colibri bate suas asas, deixando, imperiosa, uma sensação de solidão no outro que fica na tarde que morre e na solar insistência dos dias que virão.



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