QUEIMADAS


Vivi uma experiência em criança que guardei em segredo até o dia de hoje. A cena me foi tão contundente, tão forte que por dias e noites voltava a minha memória em momentos inesperados devolvendo instantaneamente a dor e o sofrimento que presenciei e que atravessaram meu espírito. 

Andava por meus nove anos de idade e morava num pequeno prédio de um bairro bucólico do Rio de Janeiro – a Tijuca e sua emblemática floresta. Estava de férias e minha traquinagem matutina predileta consistia em descer as escadas do edifício, a partir do quarto andar, trocando pães e litros de leite das portas de todos os apartamentos que alcançava numa sorrateira carreira.

Quando as famílias acordavam, criava-se uma confusão trajada de pijamas camisolas e caras de sono estupefatas entre os moradores. Pois houve o dia em que me pus à escada para cumprir minhas obrigações de moleque e deparei com uma mulher grávida, nua, com o corpo em chamas. Os braços abertos acima da cabeça, olhos esbugalhados, choro convulso e uma expressão de dor e pavor impressa no rosto disforme. Os cabelos, os braços e os dedos das mãos retorcidos em agonia fumegando como galhos secos e queimados. Pedia em voz quase inaudível por socorro entre as chamas que cobriam seu corpo. Não acreditei naquela imagem e voltei correndo para casa.

Trêmulo, embaraçado, não consegui bater à porta e entrar. Com temor e ansiedade, retornei à escada para acordar daquele pesadelo e brincar de litros de leite, pães, pais e mães trocados. Não pude. Era real. Ela permanecia lá. Havia uma mulher grávida com o corpo em chamas. Os olhos suplicantes. Um pedido de socorro embaçado em lábios ressecados. Como um raio estourei a porta de casa e sem conseguir falar e explicar à minha mãe a tragédia, puxei-a para fora de casa desesperado, agoniado e a fiz testemunhar o acontecimento. Minha mãe gritou histérica por ajuda e logo outros moradores acorreram e a mulher foi levada para o hospital. Acontecera um acidente doméstico no uso do fogão. Ficamos em expectativa por horas até sabermos de sua morte e do filho que carregava. Aquela imagem, durante minha infância, povoou meu espírito e súbito retornava como um filme em minha memória.

De há muito esse fantasma me abandonara, mas poucos dias atrás, distante de minha infância e longe do Rio de Janeiro, cruzando de carro a estrada que liga Miracema a Miranorte a caminho de Palmas no Tocantins, percebi um feixe de luz vermelha na linha do horizonte, parecido com a tonalidade do céu na alvorada. Eram oito horas da noite e minha imaginação cigana construiu fenômenos exóticos. Naves espaciais? Corpos celestes? Aumentei a velocidade do carro e chegando próximo penetrei numa cortina de fumaça negra, senti náuseas, a garganta sufocada, a respiração ressecada, irritação nos olhos. Fechei os vidros e continuei acelerando. Deparei então com a mesma dor e o mesmo sofrimento que atravessaram minha alma nos meus infantes nove anos. Lá estava a mulher grávida com o corpo em chamas. Um arrepio percorreu meus sentidos. Toda uma grande extensão das matas em chamas. Um espetáculo lombroso. A estrada margeada por labaredas ardentes estalando o corpo das árvores abatendo-lhes da vida. Ao longo do olhar o fogo proporcionava o cenário de um ritual macabro. Mais adiante, raposas, cotias e outros animais atravessavam a estrada fugindo do calor e da fumaça.

Era uma queimada. Lambia o corpo das matas como o corpo daquela mulher nos degraus de minha infância. Meu fantasma retornado. Pássaros, animais, todas as formas de vida ali geradas mortas. Mortas como morto estava o menino que a mulher incendiada carregava para o futuro.

Essa violência piromaníaca está fundamentada numa economia suicida e acabará por ressecar todos os nossos sonhos.


[Crônica escrita em Miracema em 1989]








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