QUANDO CHOVE SOBRE O CERRADO
Filho desse cerrado agreste, herdeiro de um sol implacável e generoso. Nos olhos e no paladar vivencio outra sorte de estação quando chega esse tempinho de chuva. Na memória afetiva e no diário de leituras faiscam lembranças recorrentes.
Recordo quando corri os olhos sobre o romance "Chove sobre minha infância", de Miguel Sanches Neto. Durante a leitura, o autor me fez resgatar mais um embornal de recordações dos dias de chuva, quando de minha infância sertaneja: “Chovia demais naquela manhã, uma chuva que molhava o piso de vermelhão da varanda da casa onde morávamos... A chuva alagando o território onde aquele que fui brincava de escorregar no piso.”
Tempos depois, vi o filme "Está chovendo sobre Santiago", fiquei me perguntando sobre o sentido do título e refletindo acerca dos desdobramentos do golpe de estado chileno, uma longa e pesada noite iniciada no ano de 1973.
No anúncio das primeiras chuvas do ano, renova-se a expectativa de sempre: tempo do pequi, buriti, bacaba, mangaba, cajuí; também é o tempo de semear arroz, milho, feijão, abóbora. Quem planta colhe, assegura a antiga premonição.
Incontáveis vezes ouvi aquela terna canção de Jorge Ben Jor: "Chove chuva/ Chove sem parar." E por falar de intensa chuva, conheço um conterrâneo que padece de aflição, medo apocalíptico de chuva forte com ventania, raios e trovões. Tento convencê-lo de que esse belo fenômeno da natureza é algo que se repete todos os anos, que é um período de renovação da paisagem, de beleza visceral. Mas nada o faz abandonar o medo paralisante.
Lembro ainda da paixão de toda criança em tomar banho de chuva, apesar das duras advertências maternais: sai da chuva, menino, você vai gripar, vai pegar resfriando; e o moleque em transe, de braços abertos e olhos fechados, sentindo a água rolar da cabeça aos pés.
Fosse hoje, eu diria o que já foi dito como sentença de liberdade: mãe, se viver é perigoso, então quem encara o sol do sertão é pra se queimar; e quem entra na chuva é pra se molhar, sem medo dos temporais, sujo de vida, no pulsar das quatro ou cinco estações.
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