A morte da fantasia



2025 nos trouxe, neste março, verdadeiro Carnaval marciano, a julgar pelo que vejo nas telas da TV e celulares. Alguns canais mostram o que (ainda) resta da folia tradicional, dando conta de certa quota de saudosismo, mas também mostram a morte lenta da festividade, com áreas necrosadas pela oficialidade.

A cidade do Rio de Janeiro, constato, continua a faturar alto com a festa de Momo e sua enorme infraestrutura que alimenta o mercado de trabalho durante todo o ano, num trabalho cotidiano nos galpões das escolas de samba; por outro lado, deparo com notícias de mais e mais cidades que oficialmente cancelaram o investimento na festa. 

As razões são variadas, indo de “contenção de gastos com o supérfluo” até “prevenção do aumento da Covid”, mas por trás das razões oficiais há a ação de um vírus cultural que se apresentou já há alguns anos, travestido de “Carnaval da fé”. Não consigo me furtar da sensação de que se trata de um paradoxo do paradoxo.

Como se sabe, o Carnaval é uma festa de caráter religioso, diretamente ligado aos deuses, sendo a Saturnália, no império romano, o elo mais próximo antes da apropriação pelo cristianismo. A característica principal da festa é a inversão de valores; é a festa do prazer escancarado, da felicidade a todo preço, do riso, dos amores, das gulas todas, da manifestação dos sonhos, das fantasias, das antíteses manifestas.

Em nosso país, não por acaso conhecido como “O país do Carnaval”, a festa sempre foi grandiosa e intensamente vivida pela população, cada região apostando na alegria (e no deboche) de acordo com sua cultura regional, variando do samba no Rio, Sampa e Salvador, ao frevo em Olinda e Recife, que orgulhosamente apresenta seu Galo da Madrugada, até as marchinhas dos blocos carnavalescos, também regionalizados em sua manifestação de alegria e deboche, além de muitas outros ritmos, modos, modas.

Toda essa gama de informações me vem à cabeça quando deparo com notícias que reportam a suspensão da festa, seja lá por qual motivo. É um modo poderoso de abrir vácuos culturais no imaginário do povo, logo preenchidos por ideologia outra.

De outra parte, me vêm notícias da esfera política que paradoxalmente são puro deboche em área que deveria ser coroada de seriedade. As telas e telinhas me mostram políticos que um dia vestem (literalmente) camisa de homenagem a torturador histórico, no outro vestem a camisa de “Brasil acima de tudo” e no outro usam um boné que propagandeia o movimento MAGA (Make America Great Again), que, se traduzido adequadamente, significa “Faça os EUA grande de novo”.

Sem querer entrar no mérito de significado e significante, é fácil compreender, pela estrutura da frase, que os EUA (os gringos insistem em chamar de América) já não são grandes como antes, mas tudo isso faz parte do verdadeiro carnaval fora de época vivido por essa corrente política, em que se elegem palhaços e animadores de auditório (de novo as telas e telinhas) para cargos e funções públicas, não só no Brasil.

Nestes nossos tempos de pós-modernidade líquida ou modernidade vaporosa, uma modernidade que está nos dados cambiantes a cada milissegundo e alocados nas nuvens, a festa da carne se traduz nos milhares de corpos destroçados em Gaza, na Ucrânia, em várias partes do continente africano.

Se trata de um Carnaval dantesco, com planejamento e construção cotidiana, arquitetada e incentivada pela indústria bélica que precisa desovar sua produção e aplicar bilhões em pesquisa e desenvolvimento de mais e mais poderosas armas.

Quedo em estado quase catatônico diante do televisor e mal consigo apertar o botão de “off”. Fecho os olhos e, nostalgicamente, me vem em socorro o poetinha Vinicius de Moraes com sua sensibilidade acuradíssima: “Acabou o nosso Carnaval, ninguém ouve cantar canções…”. A diferença é que ele se referia à Quarta-feira de Cinzas; eu me refiro à nossa cultura. 




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