GATOS

 




Até que gostava de gatos. Achava-os elegantes e graciosos. Sempre manteve um em casa, com cuidados exclusivos. Pois, além da beleza, o gato cuidava de afugentar ratos e insetos. Preava pássaros imprudentes, pardais que enchiam de cisco as beiradas da casa. Efeito colateral inevitável que considerava excessiva, pois ao gato não faltava a ração suficiente. Matava pardais só por instinto. Nem o comia. O festival de penas e a carcaça do pássaro sujando a calçada. Até então, gostava de gatos. Entendia-os e se divertia, vendo sua agilidade e sua modorrice no sofá. Uma vida para poucos. Comer, dormir; dormir, comer. Tinha a destita de suas fezes, mais fétidas do que as de um cachorro ou mesmo de gente. Mas se é um gato só, contornável.

Ocorre que, à sua porta, foram abandonando filhotes de gatos. Os filhos e a esposa, com dó, foram recolhendo-os, tratando deles. De um a um, chegaram a ser quatorze. No princípio, o miado desesperado dos pequenos órfãos que faziam das pessoas uma agência materna. Depois, o cheiro de mijo e fezes por todo canto. E cresceram.

De filhotes a filhos, a despesa aumentou. A ração, a da boa, custa caro. A cirurgia de castração de cada um também expensiva. Era alto o preço da piedade.

Em casa, bolas de pelo pelos cômodos, pelos sofás e camas. A casa se emporcalhava. Premido à limpeza mais frequente que antes, foi tomando desgosto pelos gatos. Pensou na doação. Talvez houvesse gente piedosa que quisesse adotá-los. Panfletou nas redes sociais. Ninguém se interessou. Mesmo porque o abandono de filhotes era algo corriqueiro em muitos bairros. Gatos de rua não faltavam para o raro intento de quem quer um gato em casa.

O desgosto veteu-se em ódio quando os gatos começaram a mijar dentro de casa para demarcar território. Os filhos achavam graça e toleravam. Mijo aguerrido, entranhável, gorduroso. Um dia, um macho urinou nos seus livros na estante. Os primeiros batizados assim foram os volumes de Sade. Ele concluiu que Sade o merecia, em razão de que faz constar estas enojadas lides em alguns de seus personagens pervertidos. Mas quando viu sua coleção de Saramago, Dostoiévski e Pensadores literalmente banhada de urina, não conteve a fúria. Só não os matou a pauladas, por intervenção da esposa e dos filhos.

Neste dia, decidiu trancar porta e janela de seu escritório, ainda que o calor exigisse o contrário. E sua relação com eles era a de uma guerra em suspensão, porém, entrincheirada. Ao gato furtivo, penetra, não tocava a pau, mas a golpes de toalha. E cultivou um desejo íntimo de exterminá-los. Do amor que gera compromisso sempre teve medo. Lembrava com frequência da frase de um literato inglês que dizia “Quem me ama, ame também o meu cachorro.” Sabia que amor traz transtornos, razão pela qual muitos se preferem desamados e desamantes. Amava a esposa e teria que acrescentar a isso o zelo pelos gatos. Amava os filhos e consentia no apego deles pelos bichos. Aquietado, chegava a gostar do trato carinhoso que eles lhes dispensavam. Havia um ganho nisto. Leu, certa vez, sobre a decisão de um hospital infantil de introduzir animais nas enfermarias. Bichos contribuindo com a terapia das crianças, sobretudo as que se tratavam de câncer. Culpava-se então pelo sentimento belicoso em relação aos gatos. Compensava-se, assumindo a limpeza do pátio e da casa e dos potes de ração. Às vezes, concedia afagos.

Enviuvou-se. A esposa, no leito do hospital, pediu-lhe a promessa: cuidar de seus gatos. Ele prometeu, movido inclusive pelo desespero da perda iminente. Até disse que cuidaria muito bem até ela sarar e retornar para casa. Ela não retornou. Herdou os gatos, premido pela sacralidade da promessa. Fidelidade é uma virtude que ia além do casamento. Não era bom no seu cumprimento. A bem da verdade, não fora um marido fiel, como a maioria dos maridos de fato não é. Mas o que se promete no leito de morte é muito mais oneroso do que a promessa feita no leito do amor. Manteve os gatos, em memória da esposa falecida, numa espécie de elo que a morte não tange. Cuidar deles era como concretizar algo que afugentava a sua ausência.

Mas não podia mentir para si mesmo a satisfação quando um gato sumia de casa, possivelmente morto na rua, vítima de veneno estendido por anônimos. Chegava a ter esperança de que os gatocidas fizessem um maior trabalho de redução no seu rebanho. Um gato teve de ser sacrificado, porque acometido de calazar. Um apareceu morto e estufado no meio da rua. Outro simplesmente sumiu. Outro foi talvez apanhado por passantes. De quatorze gatos, restaram nove. Seguindo a ordem cronológica natural dos gatos, viu que possivelmente morreria antes do último gato. Seriam gatos para o resto de sua vida.

Chovia e uma gata foi esquecida dentro de casa. Quando voltou, deparou-se com o monte de fezes sobre a colcha da cama. A carne que deixara para descongelar jogada no chão da cozinha. As noites infernizadas com o cio das gatas. Ele começou a declinar da promessa. Matar aqueles bichos, antes que enlouquecesse ele mesmo, era uma tentação que esbarrava na questão judicial que criminaliza quem abandona, machuca ou mata animais. O crime dá cadeia.

Decisivo foi o dia em que o calor insuportável fê-lo abrir porta e janela de seu escritório. Era ali que fazia a maior parte de seu trabalho e onde passava a maior parte do tempo. Os gatos não lhe pouparam. Tendo que atender um pedinte ao portão, com narração demorada de sua desgraça, perdeu a vigilância do recinto. Quando retornou às suas tarefas, os livros das prateleiras inferiores estavam encharcados de mijo.

Na casa agropecuária, justificou ter muitos ratos em casa, para levar os chumbinhos. Em casa, certificando-se de estar devidamente sozinho, empanou-os em pedaços de carne e distrinuiu a todos. Solução final. E pensou em Arendt, analisando o holocausto judeu. Nem por isto sentiu-se um nazista. Gato não é gente.

Como depois desovar os cadáveres, sem dar pistas? Não foi difícil. A cidade mantinha câmeras nas ruas principais do comércio. Nenhuma nos bairros populares. Então, ensacou cada um num saco próprio. Atulhou o porta-malas do carro e saiu em direção à zona rural. No caminho, os entulhos à beira da estrada. Jogou lá uns três. Depois, arremessou num córrego mais dois. E o resto, no meio do mato. E voltou para casa. Para contornar a desconfiança dos filhos, manteve dois, os que menos dariam problemas. Disse que os dera para adoção. Que se contentassem com a dupla restante.

E aí o seu inferno começou. Ao deitar à noite, começou a ouvir miados de gato. Levantou-se, abriu o portão. Nada. Nenhum gato na rua. Perguntou aos filhos se tinham escutado. Não tinham. Voltou a dormir e o miado de gatos voltou a sinistrá-lo. Noite após noite, o tormento. Os inúteis abrir e fechar do portão. Durante o dia, a canseira da insônia noturna fazia sua figura depredável. Até que, numa noite, desesperado, ele próprio começou a miar. Miava alto e desesperado. E mia até hoje na clínica psiquiátrica onde foi internado. Sedado, antes de mergulhar no sono induzido, ele diz:

 − Sim, eu cuidarei, meu bem.





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