A avó
Acabara de nascer o netinho e a avó não cabia em si de tão feliz. Já tinha imaginado que a família não cresceria para além dos três filhos e duas noras. Os dias são difíceis e é necessário ter mais esperança que descrença para apostar no futuro, para entregar ao mundo uma nova criancinha, aliás, a mais linda do mundo, o netinho. É preciso acreditar que o país, mais adiante, tornar-se mais democrático, igualitário, justo, vencidos os preconceitos e intolerâncias, com mais consciência ecológica... E com direito à mais literatura que à pressa da leitura em textos elementares em redes sociais e de uso desavergonhado de IA. Para isso, enfim, milita a avó, afiando desde cedo sua foice e tomando nas mãos o seu martelo. Ou o computador.
Tornara-se incapaz de concentrar-se no trabalho, o tempo todo à espera de que o netinho chorasse e pudesse, na qualidade de avó raiz ou quase, oferecer-lhe o colo. Com o colo, vêm as canções de ninar. Aí começou o problema. Inquietou-se um tanto com o repertório atualizado pela memória e que principiou a cantar para fazer dormir o mocinho sofrendo com as terríveis cólicas que acometem os recém-nascidos. Lá foi ela:
Bambalalão,
senhor capitão,
Espada na cinta,
baioneta na mão.
O ritmo e as rimas marcam o compasso que anuncia uma guerra, enquanto o corpo da avó dança para lá e para cá com o garotinho nos braços. Prestou atenção nos efeitos. Parecia ouvir um tambor, já enxergando a fila de sujeitos uniformizados, em marcha, caminhando em direção ao confronto. Muito bélico. A cantiga teria nascido no contexto da I Guerra Mundial? As mães, à espera dos maridos lutando e morrendo nas trincheiras, acalentavam os filhos falando em baionetas? Tinha aprendido esses versos com sua avó, mas com quem avó aprendera isso? Quantos mares atravessou para chegar, enfim, a esta casa no Tocantins?
Lembrou-se de outra:
Du, dururu
Atrás do murundu
Vem o bicho bravo
Pra comer com angu.
E uma terceira, a mais clássica:
Bicho papão,
De cima do telhado,
Deixa o menininho,
Dormir sossegado
Como se pode ver, todas têm cunho amedrontador e concluiu que isso não pode produzir bom resultado para uma criancinha que quer descansar tranquila. Lembrou-se ela de que, na infância, temia a aparição do bicho papão, esse que poderia, não apenas estar lá no telhado, mas vir também esconder-se debaixo da cama. Temia a escuridão e olhava assustada nas paredes o efeito das luz produzida pelas chama da vela dançando pelos movimentos do vento. A casa, então, não tinha ainda energia elétrica e a noite era, enfim, destinada a todos os medos e mistérios, como o da promessa da súbita aparição do bicho papão e sua fome de crianças.
Principiou por tentar inventar outros versos, mudar as rimas, enquanto a memória insistia no velho repertório. Achou por bem dedicar-se a produzir outras cantigas, que deveriam ser testadas quanto à competência para aquietar bebês e ajudá-las a adormecer sem medo. Não conseguiu ainda realizar o intento. Preguiçosa, procurou uma versão em francês do refrão É o tchan, que, se não dá sono, serve para dançar festivamente com o netinho enquanto ele pode começar por ampliar seu repertório linguístico:
Tenez le tchan,
Attachez le tchan,
Tenez le tchan,
Tchan, tchan, tchan, tchan.
Uma outra escolha foi dançar ouvindo Pero no Jair, no animado ritmo argentino da cumbia. Os versos podem, afinal, ensinar que luta política não desdenha do humor:
Llegó fin de semana
y todo el mundo va a salir
Pero no Jair, pero no Jair
Con los amigos por la calle,
mi traguito presumir
Pero no Jair, pero no Jair
A avó deveria, certamente, ser menos eclética e mais poética, mas não se fazem mais avós como antigamente. Deveria, neste exato instante, estar ao menos tentando organizar os versos mais lindos para o mais lindo neto. É uma avó muito dispersa. Não tem jeito. Só conseguiu mesmo escrever esta crônica.



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