URUBU QUE BEBIA CACHAÇA
A praça era antiga. A igreja, um pouco mais. Vila do Conde é uma ponta de terra enfiada no rio Pará. Portuária, no horizonte esmaecido do rio, a ilha de Marajó. Ali, embarcam bois aos milhares para os rincões do mundo nos navios que se atracam. Não só bois, mas também a bauxita, o caulim, o dendê. O rio não parece rio, parece mar. É preciso entrar nele para creditá-lo como rio de água doce. Ali banham seus ribeirinhos, na maré baixa. Ali se enfiam os navios vindos do mundo inteiro.
Como em todo porto, abundam os detritos e os urubus que os faxinam. De modo que que, na vila, eles estão lá, centenariamente, como seus moradores tradicionais. Há cães aos montes. Há bêbados que fizeram da praça sua casa. E todos convivem numa existência que parece perenizada.
Todo mundo conhece todo mundo. Virtudes e vícios são públicos e preenchem as conversas e as notícias. Não faltam os peixes como não faltam o açaí nem a mandioca dos tacacás e maniçobas. Também não falta a cachaça.
Mas, entre os bêbados de rua, está um urubu que aprendeu a beber cachaça. Não alça voo como os demais de seu preto bando. Urubus são aves das alturas, majestades dos céus. Este não. Vive no chão como as galinhas, como os cães, como os mendigos. Dizem que teve as asas quebradas. Desde então apareceu por ali, frequentador de calçadas e portas de boteco. Não sabem como principiou no vício. Mas bastava ver alguém com uma garrafa que vinha, como cão à porta de açougue, para instar ao biriteiro. No princípio, era enxotado. Aos poucos se tornou um convidado, O bebum, quando pedia cachaça, pedia dois copos. O dele e o do urubu.
Bebia e saía cambeteando, como todo bêbado que se preza. Andar bambeado, sem cair. Honrava a profissão? Qual profissão, se para ser contumaz no vício dever-se-ia renunciar a qualquer uma?
Os bêbados às vezes encrencavam-se entre si, desafetam-se. Raras vezes, feriam-se, em tentativas de homicídio. Nisto, o urubu, único de sua espécie, diferia. Com qual urubu iria brigar? Na falta de seus pares, avançava contra cachorros, contra carros e ciclistas. Isto só enquanto estava bêbado. Quando não estava, como todo bêbado, ficava num silêncio triste.
Um dia, resolvi pintá-lo num quadro, antes que viesse a morrer de alguma estúpida ação desatinada ou de desnutrição, porque nunca o vira comer alguma coisa. Não comia nada do que lhe lançavam na calçcada. Só aceitava o copo de cachaça. Apanhei uma garrafa da mais vagabunda cachaça e um copo. Fixei meu cavalete, nele dispus a tela, sentei na banqueta, com a paleta nas mãos. Enchi o copo e o coloquei um pouco além. Queria registrar a cena já tão corriqueira.
Ele olhou o copo e olhou para mim. E, pela primeira vez, não bebeu. Insisti que viesse. Ele se estacou, olhando para mim. Nenhum movimento. Minutos depois, foi embora. Fiquei observando-o, sem interferir na sua recusa. Foi a última vez que o vi. Nunca mais apareceu ali. Aguardei-o por duas semanas. Perguntei por ele a todos que vinham até o boteco. Ninguém que soubesse dele.
A tela vazia vazia ficou. Até hoje tento entender sua recusa, seu afastamento e, por fim, seu desaparecimento. Cheguei à conclusão de duas coisas diametralmente opostas. Uma coisa é a indigência pela qual se é obrigado a resistir. Outra coisa é o retrato da indigência por meio do qual um ser será perenemente narrado. O urubu sabia de si e sabia do mundo mais do que eu sabia das cores.
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