Essa tal vida
É um circo irado, deduzi. Tudo nele é inquietante em vez de agradável. Do drama à comédia, passando pelo rigorosamente hilário, soava-me estranho. Eu estava na plateia, mas me sentia membro ativo daquele espetáculo, e vi entristecido que todo mundo a minha volta sorria às gargalhadas até mesmo quando a caricatura de palhaço vestido de terno com cores berrantes, cartola multicolorida e sapatões pontiagudos com que chutava o traseiro das pessoas estafadas por tarefas repetitivas, entrou no palco. Um imenso palco, tão vasto quanto um país, quiçá o mundo. E eu, amargurado, pensei, porque aquilo beirava o absurdo –, é sonho ou realidade? Como se adivinhasse meu pensamento, o palhaço apontou o dedo para a plateia, e pareceu escolher-me como alvo entre os milhões ali presentes – sim, eram milhões –, mirando minha cabeça como um policial com sua arma contra preto e pobre em batidas na favela, e disse num misto de irritação e riso: “escrotos como você prejudicam o riso e o mundo. Bons são os que só trabalham e riem em qualquer situação. A estes estará garantido o Paraíso”. E mais risos, e risos, e risos. Senti-me sob risco, porque distinguido entre milhões presentes, que me olhavam com penetrante ódio. Vão me linchar!, temi. Girei rápido a cabeça para ver se havia espaço para fuga na retaguarda. Foi quando dei de cara com a esposa que me olhava imóvel na cama. Calma, ela disse. Então é sonho?, exclamei aliviado. Sim, somente mais um péssimo sonho, acalmou-me, como se tivesse presciência de meu sonho. E reforçou quase rindo de minha cara alarmada: já lhe disse que pessoas como você sonham constantemente consertar o mundo, mas tudo que conseguem é desconsertar o próprio riso.
🎨 Die Zeichen Pl.4 (1919-1920) de Otto Freundlich (1878-1943)
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